Crítica | Malignant (2021)

 



O diretor, roteirista e produtor James Wan, munido de uma criatividade latente, e a coragem necessária para levá-la adiante, demostra desde sua primeira obra, saber e entender conscientemente que o clichê pelo clichê é clichê. Sua forma autoral de conduzir um filme asseguraram-no como um dos maestros do cinema de terror atual, levando-o consequentemente a assinar às três franquias, deste gênero, mais bem-sucedidas dos últimos vinte anos. Em Malignant, Wan arquiteta um filme, que mesmo gerando reações imediatas, comparações e analogias devido à aparência familiar, não é óbvio.

Madison Lake, que está grávida e já sofreu anteriormente dois abortos espontâneos, tem sua cabeça batida contra a parede por seu abusivo marido. Na mesma noite, enquanto ela dorme, ele é brutalmente assassinado em sua casa. Na madrugada, ao encontrar o corpo do marido, Madison se depara com o assassino, que ainda está no local. Ao tentar fugir, ela sofre uma agressão, resultando em um novo aborto. Dias após esse acontecimento, Madison começa a ter sonhos, no qual, impossibilitada de se mexer, é obrigada a presenciar diversos assassinatos.

Posteriormente, percebe que de alguma forma misteriosa está conectada ao assassino e que estes sonhos, na verdade, são visões de assassinatos reais que estão sendo cometidos. Ao investigar a origem dessa conexão, depara-se com uma lembrança de Gabriel, seu amigo imaginário de infância. Lembrança que fora enterrada em sua mente, após o nascimento de sua irmã.

Uma estória servida de referências, que não soa inteiramente desconhecida aos mais devotados amantes do cinema de terror. São perceptíveis as homenagens a filmes consagrados do terror como The Exorcist (1973), Suspiria (1977), Poltergeist (1982), Scream (1996) e The Ring (2002). O roteiro guarda similaridades com Sette note in nero (1977) e Opera (1987), duas grandes obras italianas do gênero Giallo. Quando a estória aborda a infância de Madison é impossível não lembrar da pequena Beth Thomas, que na década de 1990, com apenas 6 anos, foi tema do documentário Child of Rage: A Story of Abuse (1990), confessando para o mundo o desejo de matar esfaqueados seu irmão mais novo, sua mãe e seu pai.

Ao descobrimos que Madison havia sido abandonada na infância em um hospital psiquiátrico. E que Gabriel era, na verdade, um gêmeo parasita de Madison que estava ligado a ela pelo cérebro. Imediatamente somos remetidos a lenda urbana de Edward Mordake, um inglês do final do século XIX que possuía um segundo rosto na parte de trás de sua cabeça, o qual, segundo a estória sussurrava para ele “coisas que só se falam no inferno”. Mas não só de referências se vive um filme. Abordar um filme com base nas referências que ele carrega é como olhar para um livro e falar sobre as letras que ali estão impressas. É ser raso, ser vazio, ser imediatista e óbvio. E como já dito, Malignant não é óbvio.

De forma consciente o filme explora metaforicamente refúgios de lembranças mentais. Ao escolher a cidade de Seattle como palco, o roteiro nos lembra que após o grande incêndio de 1889 que consumiu toda a cidade, o município foi inteiramente reconstruído a um nível acima do antigo, enquanto também nos mostra a mãe biológica de Madison trabalhando como guia de turismo na cidade subterrânea. Quando a guia de turismo é sequestrada por Gabriel, ela é colocada amarrada no sótão da casa de Madison. E quando a irmã de Madison sai em busca de documentos que possam clarificar o passado da protagonista, é no porão do Hospital que ela encontra as informações que precisa.

O Subterrâneo de Seattle, o sótão da casa de Madison e o porão do hospital, são artifícios alegóricos que literalmente escondem uma coisa em comum, a mãe biológica de Madison. O filme faz questão que percebamos que existem locais ermos e ocultos que guardam as lembranças da infância esquecida da protagonista.

A infância anterior a adoção de Madison foi enterrada por ela em locais velados de seu subconsciente. Com essas memórias foram reprimidas lembranças de Gabriel, seu irmão parasita. Gabriel pode ser visto como um fantasma do passado, uma representação das coisas ruins que aconteceram com Madison antes de sua adoção. Ao encontrar amor em sua família adotiva, Madison tem forças para silenciar Gabriel e enterrar de vez a presença dele em sua vida.

Quando mulher feita, ao sofrer repetidas agressões e sucessivos abortos, experienciando novamente a falta de amor, Gabriel tem forças para emergir de seu fúnebre sono. Os acontecimentos e sentimentos da vida atual de Madison se tornam gatilhos que reabrem feridas e traumas da infância que não estavam completamente curados. Como nos filmes italianos clássicos de Giallo o motivo para explicar os crimes são centrados na exploração da psique da personagem.

A construção da metáfora perpassa pela fotografia, que não é somente fria, como seria a fotografia natural na cidade de Seattle, uma das cidades que mais chovem no mundo. A fotografia é mórbida, estéril, repleta de sombras e de tons pastéis, atenuando o sentimento de melancolia guardado no interior de Madison. James Wan faz referências aos memoráveis diretores do Giallo italiano, Dario Argento e Lucio Fulci. Esteticamente ele constrói um filme em que, mais que horrorizar, deslumbra o expectador. Ao falarmos sobre os assassinatos que ocorrem no filme, Wan transforma a morte em espetáculo, sendo guiado até certo ponto pela mão invisível de Argento.

Entretanto, a construção da personagem de Madison não carrega a sensualidade presente nos Gialli, transparecendo o respeito de Wan pela história e sofrimentos da protagonista. Por vezes, Wan dedica atenção aos olhos de Madison e neles podemos sentir toda a dor, conflitos e desespero carregados no interior daquela personagem. Um olhar que incomoda, que nos faz enxergar além de Madison, nos fazendo refletir a respeito de toda a história que a levou àquele momento específico na narrativa. A essa poderosa atuação deve-se fazer jus a atriz Annabelle Wallis, recorrente colaboradora do diretor.

Malignant é um filme que veste a capa do terror e visualmente caminha por vários subgêneros e temas do gênero para contar a estória de uma mulher que carrega sobre ela o véu de um passado que preferiu esconder nos mais tenros lugares da memória. Uma mulher que ao ter sua derradeira história confrontada, precisa escolher se deixará ser dominada ou se dominará o seu passado a fim de abrir os olhos, descobrir sua força interior e identificar a ligação com sua família. Família que, mesmo não sendo de sangue, destila sobre ela, sem pedir nada em troca, o amor e o zelo fraternal necessários para cicatrizar as feridas de seu passado.



Ficha Técnica: Título: Malignant | Ano: 2021 | Dirigido por: James Wan | Produção: James Wan | Duração: 111 minutos












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