Crítica | Repulsion (1965)
Quando o ganhador do Oscar de 2002 na categoria melhor diretor foi anunciado, raras foram as pessoas surpresas com o nome do vencedor. Roman Polanski, há décadas extasiava as audiências com sua refinada habilidade de modelar o subjetivo. Negando a visão poética a respeito de todos os aspectos da vida, Repulsion, através de sua personagem principal, externaliza o peso das silenciosas imposições e cobranças sociais que ocasionalmente levam a um abismo psíquico.
Em uma Londres dos anos 60 somos apresentados a Carol, uma imigrante Belga que mora com sua irmã em um pequeno apartamento alugado e que trabalha como manicure. Certa feita, após sua irmã partir em uma viagem de aproximadamente 15 dias com o namorado. Carol, uma moça com olhar vazio e distante, socialmente assimilada como tímida, mas que possui, entretanto, em seu interior, um turbilhão de conflitos, percebe-se sozinha. E ao lidar somente consigo todo sentimento represado, enfim, transborda.
Sutil e subliminarmente, desde o primeiro minuto de rodagem, o roteiro nos conduz ao âmago de Carol, compreendemos que a jovem nunca foi protagonista mas sim coadjuvante de sua história. Cedendo inconscientemente, sem resistência alguma, a toda submissão moral, ética e social que lhe foram impostas. Aos poucos, como uma semente que desperta, raízes de objeção criam vida em seu interior, clarificando para a personagem toda asfixia que lhe foi compulsoriamente hospedada. Sua própria existência e autonomia enquanto ser humano ganham contornos claros e Carol se impõe. A partir deste momento a conexão com todas as camadas da vida que antes advinham da submissão torna-se uma relação de repulsa.
A repulsa de Carol não se resume a uma simples objeção “à vida como ela é”. Ruge nela a mais profunda abominação para com o cotidiano e a falta de sentido da rotina, um estranhamento com as tentativas de relação pessoal e íntima por parte dos homens e uma aversão a toda tentativa de imputar sobre ela algo que não é a sua legitima vontade, aliás, que vontade? Os sabores não são mais atrativos e a música perde sua importância. A personagem se entrega ao vazio, se entrega as suas próprias regras e direções, imerge em seu mundo particular onde nada nem ninguém podem impor algo sobre ela. Carol, à lá Meursault¹ se sente uma estrangeira em sua existência.
Polanski, habilmente constrói um filme repleto de poderosas dicotomias, imergindo um passo de cada vez o expectador na profunda inquietação da alma de Carol. A personagem é interpretada pela grande Catherine Deneuve que, aos seus 21 anos, já havia se lançado ao estrelato conquistando Cannes com Les Parapluies de Cherbourg (1964). Deneuve, brilhantemente dá vida a essa dissonante personagem, essa incógnita, que ao mesmo tempo que transparece uma fragilidade quase infantil atenuada pela exuberante beleza, consegue nos detalhes da atuação incomodar. De uma forma sutil, no entanto, primorosa, a atriz desnuda as camadas psicológicas de Carol, injetando uma crua e inquietante realidade a essa personagem.
Essencialmente, o filme tem o apartamento e a moça como protagonistas, os dois estão religiosamente ligados, uma vez que a desordem, as alterações, as degradações e as putrefações que ocorrem no decorrer do filme no imóvel, são, na verdade, reflexos metafóricos da metamorfose pela qual passa Carol em seu interior.
A trilha sonora, em grande parte da obra, é o som ambiente, nesses momentos, onde podemos escutar nossa própria respiração, nossa imersão em Carol, proposta pelo diretor, se completa. A coroação da trilha, é claro, fica a cargo do inesquecível jazzman Chico Hamilton que é magistralmente pontual, em especial na faixa batizada como Carol's Walk.
Roman Polanski enfrentou dificuldades em encontrar interessados em comprar o seu roteiro. Repulsion foi financiado por uma companhia britânica que aceitou investir no jovem, porém, visionário e competente diretor e roteirista. O filme seguido de Rosemary's Baby (1968) e Le locataire (1976) compõem a chamada trilogia do apartamento.
Claustrofóbico, angustiante, visualmente repleto de contrastes e metáforas. Repulsion é uma obra audiovisual complexa, que envolvendo o expectador transporta-o para a sua realidade. Um filme que cria e alimenta medos internos e discussões a respeito de como as taciturnas e torturantes imposições morais e sociais acrescentadas de desamparo emocional, podem acarretar um desequilíbrio psicológico que absorve para si a razão e constrói, a partir daí, uma realidade individual.
¹ Meursault: Personagem principal da obra O estrangeiro (1942) escrita por Albert Camus.
Ficha Técnica: Título: Repulsion | Ano: 1965 | Dirigido por: Roman Polanski | Produção: Gene Gutowski | Duração: 101 minutos
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