Crítica | Dark Crimes (2016)
Na década final do século passado, três filmes lançados no mesmo ano e tendo como protagonista um jovem ator, brindaram o mundo com uma exposição à catarse cômica. Os filmes Ace Ventura: Pet Detective, The Mask e Dumb and Dumber, lançados em 1994, tiveram um sucesso arrebatador e foram os responsáveis por carimbar o nome de Jim Carrey no consciente coletivo dos expectadores e na história do cinema cômico. Tornando-se difícil, a partir deste momento, imaginá-lo em filmes de outro gênero se não a comédia. Contudo, Jim Carrey opondo-se às conclusões a respeito de sua atuação, expôs a sua maturidade como ator ao protagonizar The Truman Show (1998), Man on the Moon (1999) e Eternal Sunshine of the Spotless Mind (2004), filmes de drama que ostentaram a outra face do artista.
Jim carrey é multifacetado, à medida que sua vida é multifacetada. As telas são um reflexo imperfeito, mas ainda sim um reflexo, de sua história pessoal. Nas palavras do ator: “Todos os filmes que fiz na vida, qualquer um deles, posso dizer que, de alguma maneira, foram a manifestação absoluta da minha consciência na época”¹. Com isso em mente, chama atenção o fato de Dark Crimes (2016) ter iniciado a sua fotografia principal apenas dois meses após o suicídio de sua ex-namorada. Fato este que de forma pública e notória sensibilizou o ator.
Entretanto, com isso, não quero dizer que Jim Carrey, no filme em questão, está interpretando a ele mesmo em um momento específico de sua vida. Acredito, porém, que as informações ditas acima são necessárias aos desavisados que se propõe a assistir ao filme atraídos única e exclusivamente pela carreira no humor do ator principal. Dark Crimes não carrega a proposta de um entretenimento fugaz, pelo contrário, é uma tragédia crua e sombria que incomoda e consegue, ao rolar dos créditos finais, deixar um prazeroso gosto agridoce.
Tadek, interpretado por Jim Carrey, é um veterano detetive da polícia polonesa, que decide reabrir um antigo caso de homicídio. Toma essa decisão ao ler no último livro publicado por Krystov Kozlov, um famoso escritor de romances policiais, a descrição detalhada de um assassinato que ocorre no mesmo local e da mesma forma que o homicídio ao qual está investigando. Chama a atenção do detetive o fato de os detalhes da investigação nunca terem sido divulgados para a imprensa e mesmo assim no livro em questão todas as nuances, de conhecimento somente da polícia e do assassino, estão ricamente descritas. Para Tadek o livro trata-se de uma nítida confissão.
Seguro da ligação do autor com o crime o detetive realiza a prisão preventiva de Koslov a fim de executar um interrogatório confrontando o livro e a investigação. Durante o interrogatório o autor se diverte e em um nítido tom de desafio trata a linguagem como um jogo de xadrez e sem assumir nem negar nada, atesta para o detetive a sua indiferença em relação ao crime e a investigação. O protagonista então percebe que o que parecia ser uma simples apuração de fatos possui arestas que precisão ser exploradas para chegar à prova cabal. Tadek compreende que deverá olhar para o abismo e adentrar o mundo do suspeito.
Dark Crimes é um filme que carrega em seu DNA a estética Noir das décadas de 40 e 50. O personagem principal é um pessimista que se encontra em uma vida ordinária devido às decisões do seu passado e mesmo decidido a buscar justiça, não é um poço de moral e possui uma conduta questionável, uma vez que descobrimos no desenrolar do enredo que suas atitudes, na verdade, são guiadas pelas circunstancias. Entretanto, o filme não se prende ao estilo Noir e bebe também na fonte do Poliziotteschi, um gênero derivado do estilo Noir, que permite ao filme adentrar assuntos como sexo e violência, que normalmente são tratados brandamente, de um forma brutal, realista e explicita.
O filme se beneficia da combinação do Noir com o Poliziotteschi. As consequências imediatas que não podem ser descartadas são a liberdade para o uso da violência explicita contra a mulher, e o surgimento de uma impactante Femme Fatale. A Femme Fatale aparece quando no desenrolar da nova investigação Tadek depara-se com a história de um extinto clube masculino chamado The cave, que antes de fechar era frequentado por Koslov. The cave era um espaço dedicado a satisfação do mais extremo prazer, um lugar onde regras eram inexistentes e o desejo mais hedonista poderia ser espontaneamente realizado. O cliente poderia bater, violentar, humilhar, amarrar uma prostituta nua pendurada ao teto, e se quisesse, até mesmo disparar armas contra ela, desde que a mulher não fosse morta, nada era exagerado.
Nesse ambiente é forjada a Femme Fatale de Tadek. Ela em momento nenhum é explicita. Ela possui uma latente fragilidade e sustenta um ar de honestidade até, literalmente, o último minuto do filme, o que inegavelmente engana o expectador. Afinal, somente após o encerramento do longa é que fica evidente o papel de Femme Fatale desempenhado por ela. A manipulação tradicional do personagem principal está presente. Entretendo, ao se abster dos clichês envoltos nesse tipo de personagem, o expectador não se dá conta, até o fim do filme, do poder que ela exercia em toda a história que estava sendo apresentada.
Todo o espetáculo é conduzido pela qualificadíssima direção de Alexandros Avranas, o idealizador de Miss Violence (2013), filme que lhe rendeu o Leão de Prata de melhor diretor em Veneza e o cavalo de alumínio de melhor roteiro em Estocolmo. Em Dark Crimes ele novamente utiliza de um frio realismo para construir um ritmo psicologicamente progressivo, a um ponto, que incomoda o expectador. Avranas consegue desnudar Jim Carrey e evidenciar para o público um ator longe de todo estereotipo que havia sido construído a seu respeito. O filme tem um roteiro que por mais improvável que pareça é baseado, com a devida liberdade poética, em um caso real publicado no ano de 2008 na revista The New Yorker².
Dark Crimes, notadamente, não é um filme para relaxar a mente após um longo dia no trabalho. Todavia, é uma obra corajosa e extremamente necessária no cinema comercial atual. Um filme livre das convenções sociais do aceitável ou não em um longa. Uma obra que ao utilizar do já datado jogo de gato e rato remete a gêneros do cinema que passaram, infelizmente, a serem usados de forma padrão pela indústria, sendo descartada toda astucia dos originais idealizadores desses gêneros. Um filme que não se submete a decisões preestabelecidas. Sem sombra de dúvidas uma obra que utiliza do realismo, que os idealizadores da sétima arte defendiam, para sacudir o espectador e tirar o seu sossego. Uma obra que certamente merece atenção.
¹ Frase dita por Jim Carrey no documentário Jim & Andy: The Great Beyond (2017) aos 43 minutos e 54 segundos.
² Artigo True Crime: A postmodern murder mystery publicado por David Grann nas edições de 11 e 18 de fevereiro de 2008 da revista The New Yorker.
Ficha Técnica: Título: Dark Crimes | Ano: 2016 | Dirigido por: Alexandros Avranas | Duração: 92 minutos.
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