Crítica | While the City Sleeps (1956)

 



Todas as formas de expressão artística foram concebidas, direta ou indiretamente, como meios de narrar histórias. Considerando que o hábito de transmitir histórias é inerente ao ser humano, pode-se concluir que a mais antiga das artes é a arte de contar histórias. Essa primeira arte, somada com a necessidade humana de se expressar, culminou no surgimento das artes do espaço, a arquitetura, a pintura e a escultura e das artes do tempo, a música, a dança e a poesia.

A criação dos irmãos Lumière, entretanto, ao ser apresentada para o mundo não foi reconhecida como arte. Pelo contrário, Louis Lumière chegou a dizer: “o cinema é uma invenção sem futuro”. Desacreditado até por um de seus criadores o cinema alcançou visionários pensadores que enxergando o potencial presente naquela invenção fizeram de sua vida uma cruzada em prol da defesa do cinema como uma nova forma de manifestação artística.

O italiano Ricciotto Canudo, teórico e crítico de cinema e talvez o primeiro cinéfilo da história, é um dos nomes responsáveis por através de uma ferrenha defesa contribuir para elevar o cinema ao patamar de arte. No ano de 1923 ao publicar o "Manifeste des Sept Arts”, Canudo realizou a apologia máxima ao cinema ao dizer que a particularidade daquela nova linguagem morava no fato de condensar em si todas as artes do espaço e as artes do tempo. E concluindo seu manifesto, Canudo nomeou o cinema como a sétima arte.

Em outras palavras, o cinema, em suma, é a arte de contar histórias. De modo consequente, em sua vida a sétima arte possuiu vários bardos. Inegavelmente um dos maiores trovadores do cinema foi o roteirista, diretor e produtor alemão Fritz Lang que já durante a década de 1910 escrevia roteiros para o cinema. Com uma história pessoal interligada a sétima arte, Lang foi um dos pioneiros do expressionismo alemão ajudando a atrair para o cinema os olhares dos intelectuais da época, que até então ignoravam o cinema como arte.

Foi um dos realizadores que mais desenvolveu a linguagem cinematográfica, dando corpo àquela jovem arte. Em síntese, Fritz Lang com o filme Dr. Mabuse (1922) e M (1931) desenhou os argumentos iniciais para o surgimento da estética Noir. Com Metropolis (1927) apresentou para os cineastas do futuro os elementos da ficção científica. Com Die 1000 Augen des Dr. Mabuse (1960) foi um dos pioneiros do Krimi, gênero de cinema originado na Alemanha, que futuramente seria uma das fontes de inspiração para a narrativa e a estética do terror moderno. Nos 20 anos que trabalhou nos Estados Unidos (1936-1957) foi responsável por 23 longas-metragens de diversos gêneros.

Entretanto, em sua fase hollywoodiana os filmes Noir foram preponderantes em sua filmografia. Grandes exemplos desse período são The Woman in the Window (1944), Scarlet Street (1945) e The Big Heat (1953) filmes estes presentes em todas as listas que se dispõe a tratar a respeito de filmes Noir. A história de Lang também caminha junto com a história da estética Noir nos Estados Unidos. Em 1956 Fritz Lang dá vida a dois filmes While the City Sleeps (1956) e Beyond a Reasonable Doubt (1956) ambos seus derradeiros trabalhos para Hollywood.

Da magistral filmografia de Lang While the City Sleeps (1956), lamentavelmente, é um dos filmes menos conhecidos e, portanto, menos cultuados. Um filme Noir que carrega em si elementos relevantes para a estética que se propõe a fazer parte. O personagem principal é um jornalista, fazendo-se assim, esse um dos filmes que fogem à lógica até então construída de policiais e detetives particulares como protagonistas do Noir. Um Noir que propositalmente coloca o crime, o mistério e a investigação em segundo plano para através de uma impassível e harmoniosa laboração contar uma história que para além do argumento tradicional desse estilo alimenta também um debate acerca de determinados males sociais.

O novo presidente do grupo Kyle Inc, um conglomerado de comunicação nova-iorquino, vê em uma série de assassinatos que assolam a cidade a oportunidade para nomear seu novo Diretor executivo ao mesmo tempo que pode conseguir uma matéria exclusiva. Para isso, incita uma disputa entre o gerente da agência de notícias, o editor-chefe do jornal impresso The New York Sentinel e o fotografo encarregado pela agência fotográfica do jornal. O primeiro a desmascarar o assassino e publicar a inédita noticia ocupara o cargo de confiança.

Edward Mobley, ex-jornalista investigativo e atual âncora do telejornal Kyle, envolve-se na competição quando Jon Day Griffith, o editor-chefe do jornal, lhe pede ajuda. Mobley, que inicialmente não desejava atuar na disputa, aceita colaborar com o editor dado que ao não lhe oferecer nada em troca Griffith, segundo Mobley, fez “Uma boa oferta, uma oferta de amigo.” A nobreza da proposta feita por Griffith é a última peça restante a respeito do ponto de vista que o diretor propõe para a narrativa.

De forma progressiva, até esse momento, Lang convoca o espectador a desenvolver reflexões a respeito da necessidade e dos limites da ambição e da ganância no contexto social. Ao apresentar o pretexto responsável por introduzir Mobley na disputa, o diretor, utilizando uma motivação moral do personagem, que contrapõe o discurso desenvolvido até esse ponto, coloca sob o holofote a hipocrisia social. Torna-se, a partir deste instante, claro o ponto de vista do diretor para a narrativa. Como bem nos lembra Fritz Lang, em uma de suas falas no filme Le Mépris (1963), “Todo filme precisa de um ponto de vista definido”. Assim, o núcleo duro em While the City Sleeps é o desejo.

O ser humano é um ser que deseja. Desse sentimento, originam-se os sonhos que cada indivíduo carrega consigo. advém também todas as motivações e os sentimentos de ambição e ganância. Todo o suspense Noir é entregue de bandeja para o espectador nos primeiros minutos de rodagem. Para que fornecendo a resposta de todo o mistério o roteiro tenha a liberdade de se voltar para a vida intima de cada personagem e assim explorar os seus desejos. E aqui está enterrado o tesouro dessa obra. De uma forma paradoxal o filme utiliza-se de uma simplicidade narrativa ao mesmo tempo que apresenta complexos personagens com motivações e objetivos diametralmente opostos.

No filme temos o personagem fiel aos amigos e infiel no amor. O ganancioso e infiel a todos. O ambicioso que tem genuínas pretensões de ascensão social sem nunca abandonar suas convicções. O que se interessa nos outros e luta por eles. O que se afunda no próprio narcisismo e egocentrismo. A mulher independente e ambiciosa, a mulher dependente emocionalmente e a mulher gananciosa. Essencialmente, uma competente e fidedigna representação da sociedade e suas relações.

While the City Sleeps é um prato que ao degustar desperta a lembrança de sabores conhecidos, entretanto, esse prato, diferentemente dos degustados até então, foi produzido mediante a utilização da receita original. Sem incrementos apelativos ou rasteiras simplificações Lang conta uma história que ecoa na essência da humanidade desde sua origem. Transparecendo todo o amor e respeito que Fritz Lang, ao realizar seus filmes com a “confiança de um sonâmbulo”, ignorando produtores e acreditando em sua forma de contar histórias, depositou na sétima arte. Transformando assim, While the City Sleeps, como também toda a filmografia de Lang, em uma obra atemporal.


Ficha Técnica: Título: While the City Sleeps | Ano: 1956 | Dirigido por: Fritz Lang | Produção: Bert E. Friedlob  | Duração: 100 minutos









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