Crítica | Lukas (2018)


 

JCVD, um filme de 2008, possui uma cena onde Jean-Claude Van Damme, o ator principal do longa, quebra a quarta parede e faz um monólogo direcionado ao expectador, em especial aos seus fãs. No monologo Jean-Claude diz: “Vocês tornaram meu sonho, realidade. Eu pedi isso. Prometi a vocês algo em troca e ainda não cumpri.”

JCVD foi filmado em uma época em que a vida púbica do ator estava completamente exposta. Drogas e problemas familiares faziam parte do sensacionalismo da mídia no período. Esse filme veio como uma carta de amor, do ator aos fãs. Prometendo que recompensaria todo afeto e carinho que ainda recebia. Aliás, o título do filme, JCVD, é irônico. Uma vez, que brinca com o fato do ator ter se tornado uma marca de si mesmo.

Ao se tornar uma marca, Jean-Claude Van Damme foi um dos primeiros atores de sua geração a fazer o que somente alguns atores conseguiram em toda a carreira, ser lembrado pelo seu nome e não por um personagem especifico que interpretou. Essa proeza refletiu em sua vida profissional, visto que os papeis oferecidos a ele, após todo o sucesso de filmes como Bloodsport (1988), Kickboxer (1989) e Lionheart (1990) queriam mostrar todas as habilidades de luta daquele belga que, ao mesmo tempo, em que atuava também era mestre em artes marciais. Até então, nada diferente do que desejava o próprio Jean-Claude na época. Posto que, ele de fato se mudou para Hollywood com a pretensão de mostrar ao mundo seus talentos marciais.

Todo esse interesse do show business resultou em anos onde o ator interpretava basicamente a mesma persona. As engrenagens giraram, a grande indústria mudou seus interesses e vagarosamente se afastou do ator. Todavia, independente de qualquer coisa em sua vida, Jean-Claude Van Damme ama atuar. Isso é evidente. Em todas as oportunidades que lhe são dadas para falar ele faz questão de deixar claro sua afeição pela atuação.

Em 2018 o diretor de cinema francês Julien Leclercq em posse de um roteiro escrito por Jérémie Guez convidou o ator para interpretar o personagem principal do filme Lukas. Um longa onde o personagem principal possui uma complexa profundidade dramática. O ator aceitou a oferta, e assim intuitivamente deu uma vida organicamente sincera a um personagem com multiplicidades, que só seriam encontradas, de fato, em uma pessoa que já houvesse passado por um tempestuoso fardo emocional.

Lukas é um pai solo de uma menina de 8 anos e trabalha como segurança noturno em uma boate de Bruxelas. Quando amanhece, já em casa, faz o café da manhã de sua filha e a leva para a escola. Dorme pouco. Leva uma vida rotineira com o propósito de dar o melhor para sua filha. Em uma habitual noite ao se desentender com um cliente influente na política do país perde o emprego. Lukas então recebe uma proposta para ser segurança em uma boate de striptease comandada pelo crime organizado.

Nessa ocasião a polícia o pressiona para que forneça informações sobre as operações da organização criminosa para a qual está trabalhando. Com o intuito que não sofra retaliações a respeito do ocorrido em seu emprego anterior e deste modo não perca a guarda de sua filha. Lukas decide cooperar com a polícia e diante disso se aprofunda na vida da quadrilha para a qual agora está prestando serviço.

A sinopse do filme é essa. A primeira vista, sim, genérica e previsível, mas como diria sabiamente o Chapolin Colorado: “Não contavam com minha astúcia!”. Nesse contexto, a astúcia do diretor Julien Leclercq ao traduzir em linguagem audiovisual o roteiro de Jérémie Guez. O diretor, no decorrer da obra, deixa claro ser admirador da escola de cinema onde a forma que é apresentada a história ao expectador caminha em uníssono ao conteúdo da obra. Transformando, assim, uma sinopse previsível em um clássico moderno de ação e drama.

O filme é um recorte linear do presente na vida de Lukas. Não existe passado e o futuro é incerto. O diretor trabalha o tempo de forma alternada. Em determinados momentos deixa o tempo caminhar em seu fluxo natural utilizando-se de longos planos sequências perfeitamente executados. Em outros se entrega a frenéticos cortes sobrepostos. Assim, Leclercq impõe o relógio sobre Lukas. Nos mostrando que todo o esforço do personagem para cuidar de sua filha e manter a guarda dela é perseguido por um antagonista maior que todos os outros e que se chama: tempo.

Os planos de câmera exaltam o cenário em duas vertentes. Na primeira, tudo é grande e subjuga o personagem à sua insignificância. Na segunda, tudo é pequeno e enclausura o personagem em seus medos. Essa estilização nos ambientes exalta o interior do personagem e o espaço assume também lugar de protagonista. Lukas tem medos. Ele tem um passado. O diretor e o roteirista optam ponderadamente por trabalhar esse passado de uma forma em que o clichê não se instaure.

A narrativa é sólida. O personagem não tem grandes habilidades militares, como sempre vemos em filmes com premissas semelhantes. Lukas é um segurança noturno. Entretanto, possui uma forte motivação, que de acordo com a verossimilhança interna da obra, o mantêm vivo. Jean-Claude Van Damme entrega uma vivida atuação ao desenvolver um pai que possui cicatrizes internas e externas que o consomem ao ponto de tirarem a maior parte do brilho em seu olhar.

Na rotina Lukas é robótico e prático. Em casa, com sua filha, é caloroso. Ela é seu motivo para continuar vivo. Jean-Claude absorve toda essa essência, e nos entrega uma atuação comedida e realista, marcada pela sinceridade em suas microexpressões faciais e corporais. O expectador crê em Lukas. Como relato pessoal: assisti pela primeira vez a esse filme com minha esposa e na última cena, nos últimos frames, ao olhar para o lado, vi minha esposa aos prantos. Mas você poderia me perguntar: “Chorando em um filme com Jean- Claude Van Damme?” e eu responderia: “Sim! Aqui, nessa obra, está a alma de Jean-Claude, aqui está sua verdadeira e mais pura essência.” Sendo assim, em Lukas, o ator cumpre aquela promessa feita, lá em 2008, quando estrelou JCVD.

Lukas é um filme, como diria Susan Sontag, para se ter uma relação mais intuitiva e menos interpretativa. O notável resultado se deve abertamente ao excelente trabalho de direção de Julien Leclercq que conduz toda a obra de uma forma precisa. Entretanto, não abandonando a interpretação, de forma metafórica o longa carrega toda a intensidade do gênero ação e se torna, ao somar dos pontos, o filme mais agressivo e proporcionalmente fraternal já estrelado por Jean- Claude Van Damme.


Ficha Técnica: Título: Lukas | Ano: 2018 | Dirigido por: Julien Leclercq | Produção: Julien Madon, Aimée Buidine, Julien Leclercq, Jérémie Guez | Duração: 94 minutos






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